Esta é uma série de reproduções fac-similares de Mário de Sá-Carneiro que cobre uma parte importante dos manuscritos que dele se conservam, bem como da obra publicada no seu (tão curto) tempo de vida, quer em livros quer sob a forma de colaborações na imprensa.
O seu núcleo consiste numa colecção reunida ao longo de uma vida de pesquisa por um intelectual francês, François Castex. Apaixonado pela arte e pela figura de Mário de Sá-Carneiro quando se tornou leitor de francês na Universidade de Coimbra nos anos 60, foi, ainda antes do entusiasmo que se havia de generalizar em torno do Modernismo português, procurando e depois publicando textos esquecidos nas bibliotecas e arquivos. Foi também sendo capaz de recuperar e depois de preparar para publicação muitos inéditos que pôde identificar, sobretudo cartas e manuscritos preparatórios dos primeiros anos.
Assim, Sá-Carneiro, grande amigo de Fernando Pessoa e poeta fulgurante e malogrado, aparece aqui com a dimensão que é a sua, a de um modernista de primeira linha.
Além dos manuscritos literários e cartas da colecção François Castex, encontra-se o essencial caderno de versos (os Indícios de Oiro) e os dois de recortes de imprensa sobre Orpheu, conservados por Fernando Pessoa e integrados o seu espólio. Percebem-se, pelas primeiras edições digitalizadas e ainda mais pelos manuscritos reproduzidos, as leituras novas que (mesmo só virtualmente) podem ser informadas pelas suas características materiais bibliográficas: os traços e cicatrizes da história que livros e papéis transportam consigo, as marcas da vontade de construir objectos com uma personalidade gráfica forte. E, perante o conjunto dos textos múltiplos, a possibilidade de ler as letras traçadas pela mão do poeta permitem ver muito para além da simples soma sintáctica dos significados das palavras.
As cartas, desde logo, têm essa capacidade de modo mais evidente. Por exemplo, nesta série, o conjunto dos postais enviados a Maria Cardoso Sá Carneiro no dia 7 de junho de 1915 é um estranho objecto, que o lado misterioso de um certo acontecimento não revelado ajuda a tornar intrigante. Há uma carta, aliás, ainda com a mesma data, em que Mário diz a Maria ter-lhe enviado nessa tarde nada menos que um telegrama e 14 bilhetes postais, dos quais François Castex recuperou nove. Maria Cardoso é uma personagem especialmente curiosa da história de Sá-Carneiro: ela é a mundana de Lisboa que se torna madrasta do poeta, que ficara órfão de mãe aos dois anos, e que, na verdade, demonstra por ela, nestas cartas que lhe dirige, um afecto inesperadamente intenso e íntimo que, por outro lado, as referências que a ela faz nas cartas a Pessoa não deixariam antever.
Estes vários cadernos, folhas e livros de verso e prosa de um autor que viveu para escrever e morreu de escrever, são notáveis por razões literárias – e históricas. Sá-Carneiro é um poeta de quem costumamos perceber pouco a sua simples realidade de homem, fora do contágio da intensidade rítmica dos seus versos ou das suas imagens sumptuosas. Ele tornou-se uma personagem dos seus livros, e nós vemo-lo assim, embalados na ficção de si mesmo que a sua obra cria. Ele é o convertido da revolução ética e poética da Vanguarda, o protagonista do glorioso episódio de Orpheu, o aventureiro da grande paixão pela Europa, o suicidado ritual no seu quarto de hotel.
Mas ele regressa em 1915 a Paris, para não voltar mais, na altura exacta em que é menos seguro fazê-lo, quando o elegante século XIX dá lugar à mais sangrenta das guerras, que obriga a fazerem o trajecto inverso, refugiando-se em Portugal, artistas como Aquilino Ribeiro, Eduardo Viana, Amadeo de Souza-Cardoso, Santa Rita Pintor. Encontramos, portanto, na vida de Mário de Sá-Carneiro aquela mesma "áurea temeridade" de que falam os seus versos, que materializam uma entrega absoluta à poesia e uma pura e física coragem.
Abre-se, agora, a oportunidade de ler ao vivo estes sinais em que se guarda o gráfico sensível dos seus trabalhos e dos seus dias. É ainda de literatura que se trata, mas vê-se bem a mão real que a escreve.
- Fernando Cabral Martins
